Lembro-me…
Lembro-me
de que em determinado dia, nos finais de Abril, em meados dos anos sessenta,
aparecer pelo chão nas ruas da baixa de Setúbal panfletos contra o governo
totalitário liderado por Salazar, incentivando o povo a manifestar-se contra o
regime.
Lembro-me
que nesse dia, quando as lojas da baixa abriram a notícia começou a correr
célere entre comerciantes e empregados das muitas casas comerciais que naquela
noite a temível polícia política PIDE/DGS teria preso alguns conhecidos
setubalenses, militantes comunistas, entre eles o dono dos Armazéns Papeis do Sado e um senhor bem
conhecido na Fonte Nova, onde naquele emblemático largo exercia as funções de
alfaiate.
Lembro-me
da enorme preocupação de minha mãe quando lhe contei estas novidades e lhe
disse que tinha apanhado um daqueles panfletos no chão e que o tinha lido
também.
Lembro-me
de ter visto, naquele período de má memória, umas centenas de pessoas que se
manifestaram pelas ruas da cidade, com a polícia correndo para os prender e,
quando chegaram frente ao edifício da Caixa Geral de Depósitos, na Avenida Luísa
Todi, arremessando pedras, partiram alguns dos vidros daquele edifício, ele
também símbolo do Estado Novo.
Lembro-me
de alguns setubalenses escutarem às escondidas as notícias da Rádio Moscovo
e de ouvir também da sua preocupação não fosse aparecer um
carro com grandes antenas que detetaria a sua posição e então a polícia
política tratava de intervir para os prender. Dizia-se então que um copo de
água junto ao aparelho receptor originaria que o radiogoniómetro não conseguiria
interceptar.
Lembro-me
da preocupação de mães, esposas e namoradas, pelo facto dos seus ente queridos,
tão jovens, serem mobilizados para as frentes de combate em África, temendo que
alguns de nunca de lá viessem. E foram muitos os que lá faleceriam.
Lembro-me
de outros que temendo a morte naquelas quentes terras de África preferiam cumprir
o serviço militar obrigatório, servindo o dobro do tempo, nos gélidos mares da
Terra Nova, pescando o “fiel amigo”, o bacalhau. Muitos desses jovens
pescadores encontraram sepultura no fundo daqueles terríveis mares.
Lembro-me
de ter sido obrigatoriamente incorporado no exército e porque a minha
especialidade militar estivesse ligado aos serviços de criptologia, tenha sido
obrigado a preencher uma ficha com os mais diversos dados individuais para
poder ser alvo de observação pela PIDE/DGS.
Lembro-me
de que quando cheguei da Guiné, dias depois e estando já a trabalhar na
SETUBAUTO, ter recebido a visita de dois agentes da PIDE/DGS que trataram de
mesmo ali procederem a um interrogatório, pelo simples facto de ter tido uma
conversa com os colegas comentado uma notícia política, e, um deles ter passado
a informação para aquela polícia.
Lembro-me
de tanta coisa!… Das condições miseráveis em que a maior parte da população
vivia. Nos bairros de lata que envolviam a nossa cidade, na ausência de
condições sanitárias, nas dificuldades diversas do nosso dia-a-dia, que só quem
não viveu nesse tempo não saberá dar o valor às conquistas que o nosso país
conseguiu nestes últimos 41 anos.
Por
tudo isto e mais alguma coisa, e sendo crítico de muitas das ações governativas
nestes tempos de democracia, continuo a considerar que mais vale uma má democracia
do que uma boa ditadura, e por isso mesmo dou vivas ao dia 25 de abril de 1974
que hoje se comemora.
Rui
Canas Gaspar
2015-abril-25
www.troineiro.blogspot.com
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