notícias, pensamentos, fotografias e comentários de um troineiro

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Já comeu este ano a Bolacha Piedade?

Recebi a incumbência de comprar uma quantidade substancial de bolacha para enviar para a Irlanda, de modo a que um setubalense que ali se encontra a trabalhar a possa dar a provar a colegas de mais de meia dúzia de diferentes nacionalidades.

Como nem todos sabem a história desta especialidade, aqui vos conto um pouco do seu percurso.

“Corria o ano de 1855, Setúbal ainda não tinha sido elevada à categoria de cidade, quando nesta vila de pescadores nascia aquela que se tornaria a famosa e muito apreciada Bolacha Piedade.

De facto, aquele foi um ano de ouro para Setúbal. As suas conservas de sardinha alcançaram uma menção honrosa na Exposição de Paris, o jornal O SETUBALENSE começou a informar a população sadina do que por aqui acontecia e o Club Setubalense foi constituído como espaço de encontro da classe dominante da vila.

Acontecimentos que só por si são motivo para considerarmos como notável este ano, sem falar no facto de que foi por Decreto de 24 de outubro de 1855 que aconteceria a extinção dos concelhos de Palmela e de Azeitão passando os mesmos a ser anexados a Setúbal.

Calcorreando o chão de terra batida do recinto da Feira de Santiago, então com mais de quatro séculos de existência, realizada junto ao Convento de Jesus, apareceriam uns jovens vendedores, com tabuleiros pendurados ao pescoço que apregoavam bem alto um novo e delicioso produto: a Bolacha Piedade.

Este novo tipo de bolacha, que os setubalenses se habituaram a identificar com a Feira de Santiago, estaria presente desde 1855 até aos nossos dias em todas as edições da mesma, realizada em diversos pontos da cidade, desde a zona nascente da Rua da Praia (Av. Luísa Todi) à zona poente da dita avenida e finalmente ao Parque Santiago, nas Manteigadas.

Mas o que torna esta bolacha ímpar é a sua receita que se mantém como segredo de família, passado de geração em geração. É esta mesma família Piedade que se junta uns dias antes do início da feira para a confecionar, de forma a estar pronta para comercialização naquele que é o mais antigo certame do seu género a sul do Tejo.

As bolachas, um produto artesanal, são bastante rijas, umas mais tostadas que outras, são muito agradáveis ao paladar e têm um sabor a anis e a erva-doce o que as torna únicas e inimitáveis.

Esta delícia não se deve comer dando-lhe dentadas, se assim o fizermos estamos sujeitos a partir um dente, mas sim, partindo-a em pequenos pedaços que se vão saboreando devagar e calmamente.

Há pessoas que compram as bolachas na feira em quantidade suficiente para consumir ao longo do período que medeia entre este certame e o próximo. Pelas suas características elas não se irão deteriorar com o passar do tempo.

A Bolacha Piedade é um dos símbolos centenários da doçaria tradicional portuguesa, agraciada em 1982 com a Medalha de Honra da Cidade de Setúbal, com produção que tem vindo a ser mantida ao longo de muitas décadas e cuja tradição manda que seja produto indispensável na Feira de Santiago.”

Texto do livro: “Setúbal – Gente do Rio Homens do Mar”

Rui Canas Gaspar
2015-07-30

www.troineiro.blogspot.com

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Faz hoje 45 anos!...

A meio da manhã de hoje o meu telemóvel tocou e do outro lado o meu amigo Ricardo Soromenho, de forma direta pergunta com ar de riso: “Sabes que dia é hoje?” (de vez em quando ele vem com o mesmo tipo de pergunta, referente a uma qualquer efeméride).

Segunda feira, dia 26 ou 27, sei lá?!... 27 confirma o Ricardo que logo acrescenta: “Faz hoje 45 anos que morreu o Salazar”.

Áh! Já percebi, queres tu dizer que faz hoje 45 anos que embarquei para a guerra de África, para a Guiné!...

Isso mesmo! Confirma o Ricardo.

De facto naquele dia 27 de julho de 1970 o navio de carga e passageiros “Ana Mafalda” estava acostado ao cais da Rocha do Conde de Óbidos e os meus pais que tinham ouvido no rádio a notícia da morte do ditador português, mantinham a secreta esperança que o navio não partisse de Lisboa.

Mas não, para desencanto dos meus pais o barco ia mesmo partir levando o seu filho mais velho para terras longínquas que se encontravam em guerra e de onde muitos jovens não regressariam.

Na minha memória guardo a imagem do meu pai, com metade da idade que hoje tem, olhando fixamente aquele barco, sem dizer palavra mas adivinhando-se que se lhe fosse possível dar um valente murro e afundá-lo de vez, certamente fá-lo-ia.

A ditadura manteve-se mesmo após a morte de Salazar e lá longe nas matas de Angola, Moçambique e Guiné os combates entre o Exército Português e os Movimentos Independentistas continuaram tal como continuaram a morrer milhares de jovens de ambos os lados.

No primaveril dia 25 de abril de 1974, um punhado de militares, onde predominavam aqueles com patente de capitão, levaram de vencida uma revolução que acabaria por colocar fim à Guerra Colonial e instaurar o regime democrático em Portugal.

Alguns meses antes eu tinha chegado a Portugal, depois de 26 meses de Guiné, sem ter disparado um tiro, sem ter recebido um tiro, mas quase, quase, a juntar as botas devido a um terrível ataque de paludismo que me deixou às portas da morte.

Outros jovens, alguns setubalenses, vieram daquela guerra com estilhaços no corpo, outros não viriam de lá vivos, como foi o caso do meu amigo Fernando, troineiro, morador na Fonte Nova, que deu a sua vida numa guerra estúpida e sem sentido, como aliás o são todas as guerras.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-27

www.troineiro.blogspot.com

domingo, 26 de julho de 2015


A “ASTÓRIA” e a “Casa da Mariquinhas”

Há poucas dezenas de anos numa qualquer noite de domingo podíamos ver a azáfama ali para os lados das docas dos pescadores e das Fontainhas, com as traineiras, os “gasolinos” e as “enviadas” a largarem amarras e a fazerem-se ao mar onde iriam pescar a farta e saborosa sardinha.

Muito desse peixe pescado ao largo da nossa costa era destinado às fábricas de conservas que laboravam em Setúbal.

A par dessas fábricas outras indústrias ocupavam muitos setubalenses, nomeadamente no fabrico de caixotes e na confeção das próprias latas de conserva.

Uma dessas unidades fabris encontrava-se localizada no topo poente da Avenida Luísa Todi e dedicava-se ao fabrico de latas e impressão das mesmas. Era a ASTÓRIA que tinha a seu cargo a estampagem e a litografia.

Hoje, domingo ao início da noite, pude observar que apenas duas traineiras saiam do nosso porto para ir pescar, elas são quase tudo o que resta da nossa outrora pujante frota de pesca do cerco.

Também não vale a pena haver mais barcos deste tipo, dado que também não há peixe para eles pescarem e assim também acabaram por desaparecer as fábricas para o conservar.

Até o edifício onde funcionou a outrora dinâmica ASTÓRIA está agora ocupado com outros trabalhadores de uma indústria bem mais produtiva, a dos impostos.

A despeito da sua volumetria o prédio foi recuperado interiormente e o seu aspeto exterior é muito agradável, conforme a imagem documenta, servindo agora como local de trabalho aos trabalhadores do Ministério das Finanças.

Curiosamente depois de fotografar este bonito imóvel e pensar neste assunto veio-me à mente o fado cantado pela nossa Amália Rodrigues, intitulado a Casa da Mariquinhas.

Porque será?...

Rui Canas Gaspar
2015-julho-27

www.troineiro.blogspot.com
Quem teve medo do “Almeida bruxo” ?

Muito pouco ficou para a posteridade, a não ser algumas memórias, sobre aquele homem alto, magro, normalmente bem vestido e de gravata colocada, que caminhava muito direito, com os braços pendidos ao longo do corpo.

O seu apelido seria Almeida, e era conhecido em Setúbal na segunda metade do século XX como “Almeida bruxo”.

A popularidade deste personagem levou-o a ser alvo de atenção do famoso fotógrafo setubalense Américo Ribeiro, autor da foto que aqui se apresenta.

Lembro-me quando este homem, que residia na Freguesia de Santa Maria da Graça, na Rua Arronches Junqueiro, aparecia pelas bandas do Bairro de Troino a rapaziada logo tratava de correr atrás dele num misto de curiosidade e de receio, não fosse ele fazer alguma bruxaria.

Quando chegava à Rua das Oliveiras a rapaziada desatava a gritar: “É Almeida bruxo!” E mal o homem se voltava, todos tratavam de fugir, como um bando de pardais, escondendo-se na Rua do Ligeiro, porque mais valia prevenir que remediar e só o seu olhar já podia augurar que nada de bom pudesse acontecer.

Vendo as coisas a esta distância, e tirando o facto de ao final do dia o nosso homem tentar manter o equilíbrio nas suas longas e magras pernas, devido aos efeitos dos vapores do álcool que lhe subiam à cabeça. O que não era de admirar por naquela época as tabernas setubalenses serem mais que muitas, “Almeida bruxo” se vivesse hoje seria considerado por muitos como um filósofo ou um observador da vida quotidiana.

Conta-se que o segredo dos seus “dotes de adivinho” residia no facto de receber em sua casa os clientes. Porém, não seria ele a fazer o primeiro atendimento, ou triagem, mas sim a esposa que habilmente encaminhava a conversa para o motivo da visita.

O “vidente” escutaria o diálogo numa outra dependência da casa e quando estava senhor da situação aparecia, como se tivesse acabado de chegar a casa, dispondo-se então a atender o seu cliente.

Depois, era usar as próprias informações disponibilizadas por quem o procurara e fazer ouvir aquilo que mais se pudesse adequar à situação do pobre paciente.
A forma como falava, calma e solene, a sua postura e o seu aspeto físico tratariam só por si de fazer o resto.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-26

www.troineiro.blogspot.com

sábado, 25 de julho de 2015

Kinito o palhaço setubalense que encantou Portugal

Se há homens com o dom de nos transmitirem momentos de boa disposição e que nos fazem rir, são seguramente aqueles que abraçaram a bonita e talentosa arte de palhaço.

Durante 60 anos esteve entre nós Joaquim da Purificação dos Santos, um homem nascido em Setúbal em 6 de março de 1922 e que uma insuficiência renal seria o motivo para nos deixar no dia 21 de novembro de 1982.

Serão certamente poucos os setubalenses que identificariam o artista pelo seu nome de batismo, porém se alguém perguntar pelo palhaço KINITO aí sim, o sorriso rasgar-se-á e a memória será avivada por muitos que o viram atuar e por outros que dele apenas ouviram falar.

Este artista setubalense foi considerado um dos melhores palhaços que Portugal conheceu, a provar esta afirmação está o facto inédito de em 1959 no Coliseu dos Recreios o público ter estado 15 minutos de pé a bater-lhe palmas.

Kinito vinha de uma família numerosa e de poucos recursos e como tal cedo teve de começar a ajudar em casa e fê-lo como acabador de calçado. Quando faleceu, depois de alegrar tanta gente com a arte que tão bem dominava, deixava também seis filhos.

O seu interesse pelas atividades circenses começou quando ainda era criança e observava os mais pequenos gestos do grupo de saltimbancos que de vez em quando passavam lá pela rua onde morava.

Com aqueles artistas aprendeu alguma coisa e aos 10 anos já o pequeno Joaquim atuava na rua dando corpo à arte que viria a abraçar e que aos 19 anos já lhe granjeara a fama suficiente para ser convidado a atuar em romarias nem que fosse só para cantar, a sua grande paixão e outro dos seus talentos.

Atendendo a que circo era mesmo o que mais gostava tratava de inventar constantemente as figuras que melhor pudessem fazer rir o público, no entanto o talentoso jovem também praticava desporto e chegou a jogar andebol num clube de Almada, onde foi internacional.

Em 1940, no Bombarral, estreou-se como animador de pista e dez anos depois criava o seu próprio grupo formando os seus quadros conforme aceitação do público.

Curiosamente entrou no circo como trapezista e não como palhaço, tendo atuado quase sempre ao lado do Emiliano, o palhaço rico.

Embora fosse em Setúbal, na Feira de Santiago o local que mais gostava de atuar teve oportunidade de se apresentar ao público de Espanha, França, Bélgica, Áustria, Inglaterra, Holanda, Itália, Alemanha, Dinamarca, Angola e Moçambique.

Kinito, tocava vários instrumentos e cantava, sobretudo canções latinas e conseguia fazer a proeza de caminhar completamente desengonçado, como se fosse um boneco articulado, mais parecendo que as suas pernas eram de borracha.

Naturalmente o artista evoluiria para o empresário do ramo e este talentoso setubalense acabaria por montar o Circo Califórnia, alugar o Luftman, dirigir o Kini, comprar o Alegria e o circo da sua vida, o Texas.

Em 1982 a sua carreira circense deste homem simples e simpático que preparava com muito cuidado as suas personagens e que gostava de fazer rir o público terminaria com uma atuação no Circo Chen depois de 4º anos de carreira como palhaço, um dos melhores que Portugal já conheceu.

Em 1989, na tenda de circo montada no Largo José Afonso, cerca de 7.000 crianças assistiram ao espetáculo de homenagem ao palhaço Kinito, um evento promovido por um grupo de setubalenses com o apoio da Câmara Municipal de Setúbal e do Circulo Cultural de Setúbal. Tratou-se de um dos raros acontecimentos em Setúbal que não dividiu ninguém.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-25

www.troineiro.blogspot.com

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Mais uma vez as cinzas dos fogareiros de alguns restaurantes vão conspurcar a via pública

Ontem, dia 23 de julho de 2015, um amigo deste grupo COISAS DE SETÚBAL, telefonou-me a informar que estaria alguém a depositar as cinzas oriundas de um fogareiro de um dos restaurantes localizado junto à doca dos pescadores, precisamente em cima do arranjo exterior  construído à pouco pela APSS.

Pedi a este meu amigo que pudesse seguir com o olhar o individuo que acabara de fazer aquele trabalho antissocial e visse para onde ele se dirigia. Curiosamente não foi para o restaurante que anteriormente prevaricara mas sim para o do lado!...

Pouco depois, como ia para aquelas bandas, passei pelo local e fotografei captando a imagem que aqui vos apresento.

De facto este assunto já aqui mereceu o devido reparo e segundo julgo saber foi dado o adequado tratamento ministrado por quem de direito.

Curiosamente, passadas algumas semanas verificamos que o bonito arranjo exterior fica de novo emporcalhado precisamente por quem deveria tratar de cuidar para que todo aquele espaço se apresentasse de forma mais limpa e agradável. Também esta uma forma de captar clientes.

Há muito caminho para percorrer até que saibamos viver em sociedade e basta um para denegrir a imagem de muitos, como é este o caso.

Mesmo assim, atrevia-me a sugerir que os Serviços de Higiene e Limpeza pudessem colocar um contentor metálico ao lado dos existentes naquele bonito espaço para que pudessem ser recolhidas as cinzas provenientes dos muitos fogareiros a carvão que por ali podemos observar.

Também gostaria de que o responsável pelo restaurante pudesse mandar o seu funcionário retirar as cinzas de cima das pedras decorativas e eliminasse de vez este mau hábito.

Quanto a multas, isso é outro departamento!... Cá por mim ontem mesmo vi-lhe ser aplicada a “coima” quando pelo menos dois clientes deixaram de entrar naquele restaurante devido a esta impensada ação que em nada abona quem a pratica.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-24

www.troineiro.blogspot.com
"Zé maluco" ou Zé dos gatos"


Em março de 2012, um mês depois de completar os 85 anos de idade faleceria no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, José Maria Tavares, popularmente conhecido entre os mais antigos setubalenses por “Zé Maluco” e mais recentemente por “Zé dos Gatos”.

Figura incontornável da sociedade setubalense  teve o seu período áureo na década de sessenta do século passado, pelo seu modo de vida diferente e irreverente.




A imagem com que se apresentava publicamente foi tantas vezes alterada que acabou mesmo por ser alvo de uma exposição fotográfica num dos fotógrafos da baixa sadina, onde podemos ver o Zé de cabelo rapado ou com vasta cabeleira, de barbas ou sem elas, com barba metade feita e metade por fazer, eu sei lá, uma infinidade de bizarras apresentações.

E naquele célebre carnaval de 1968 que teve por rei outra popular e incontornável figura setubalense, Francisco Finura e onde eu também desfilei comandando uma formação romana composta por algumas dezenas de guerreiros, o “Zé Maluco” também lá ia encerrado numa jaula a par de mais duas outras personagens típicas da nossa cidade. Uma inofensiva brincadeira aplaudida por uns e criticada por outros conterrâneos.

Este homem  que sempre viveu um pouco à margem das regras sociais era um exímio jogador de cartas, a quem tratava por tu, daí a sua particular queda para as apostas. Mas ele não apostava só que ganharia num qualquer jogo de cartas, tudo lhe servia para apostar nem que fosse o tempo que levaria a dar uma volta completa à Praça de Bocage.

Depois deste período áureo da sua vida José Maria Tavares começou a dedicar-se à proteção dos gatos, dada a sua particular afeição aos animais. Passou privações para conseguir alimentar os seus gatos e não admitia que alguém fizesse mal a um qualquer animal, muito menos aos seus amigos gatos.

Devido a esta invulgar caraterística, levada a pontos extremos, José Tavares, foi perdendo a alcunha de “Zé Maluco” e ganhando aquela outra de “Zé dos Gatos”.

Quando o caixão levando os seus restos mortais saiu da Capela de Nossa Senhora da Conceição com destino ao Cemitério de Algeruz, o setubalense Luís Filipe Estrela colocou a bandeira do Município sobre a urna, uma ação de caráter individual de que a Autarquia Sadina se demarcou invocando desconhecimento do assunto.

Igualmente foram poucos os seus conterrâneos que o acompanharam à última morada, apenas meia centena entre tantos e tantos que com ele privaram em vida.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-24

www.troineiro.blogspot.com

quinta-feira, 23 de julho de 2015

As imponentes chaminés das conserveiras setubalenses

Certamente que não será nenhum disparate se pensarmos que a determinada altura poderiam ser vistas na cidade de Setúbal na ordem de uma centena destas imponentes chaminés, se pensarmos que por aqui chegaram a estar ativas em simultâneo mais cem fábricas de conserva de peixe.

Ainda hoje subsistem na cidade umas duas dezenas destes marcos de uma atividade que se finou.

Elas próprias são motivo de atração e bem que poderia haver um circuito turístico que pudesse contar um pouco da riquíssima história das fábricas de conserva e dos seus trabalhadores, circuito que passaria por algumas das zonas onde se encontram as chaminés e que culminaria no Museu do Trabalho, ele próprio instalado numa antiga fábrica conserveira.

Mas, o que hoje, dia 23 de julho de 2015 me chamou a particular atenção foi a montagem de andaimes envolvendo uma dessas enormes chaminés existentes nas Fontainhas.

Não tive tempo de indagar que tipo de intervenção ali se iria desenrolar, mas quero acreditar que se irá proceder a obras de manutenção e consolidação estrutural, com vista a manter aqueles marcos bem visíveis e agora mais apreciados do que nunca.

Setúbal pode não ter, e de facto não tem mesmo, muitos edifícios históricos e são parcos os seus motivos de atração, pelo que tudo o que pudermos valorizar e preservar do nosso património edificado será uma mais-valia que os nossos vindouros certamente reconhecerão e agradecerão.

Deixo aqui este apontamento como registo de um acontecimento raro de intervenção levado a cabo numa destas estruturas que são já também, eles mesmos,  um dos emblemas da laboriosa cidade do rio azul.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-23

www.troineiro.blogspot.com

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Os meus gostos

Os gostos não se discutem e por isso mesmo admito que os meus amigos possam discordar das minhas opiniões e gostos mais ou menos esquisitos.

Por exemplo:

Gosto de zonas históricas, com pequenos prédios antigos, recuperados e bem apresentados, onde as floreiras nas janelas dão um toque mais humanista, de beleza e de vida.

Gosto de rotundas e, dá-me um especial prazer, particularmente quando estou em terras desconhecidas e mal sinalizadas, dar umas voltas pelas mesmas até optar pela saída.

Gosto de obras de arte dispersas pelas localidades, particularmente nas rotundas, onde funcionam como referência e dando um ar de beleza ao mesmo tempo que são mais um motivo de atração para os seus habitantes e para quem os visita.

Pode parecer estranho, mas incomodava-me até há meia dúzia de anos que a minha cidade de Setúbal estivesse tão carenciada destes três pormenores de que tanto gosto.

Felizmente que a situação se inverteu e hoje a nossa cidade se apresenta com um aspeto muito melhor embora todos reconheçamos que ainda temos um longo caminho a percorrer.

Só não erra quem nada faz, mas também é um facto de que se eu erro e se me chamam a atenção para a asneira e persisto na mesma, então o caso passa a ser grave.

Bem, posto isto, e partindo do democrático princípio que cada um tem o seu gosto e que os mesmos não se discutem, não irei criticar nem aplaudir as obras de arte colocadas nos diversos espaços da nossa cidade, mesmo assim preferindo tê-los que não tê-los.

Porém, gostaria de chamar a atenção para a decoração que está a ser executada nas rotundas da Avenida da Europa e nas outras duas frente ao Estádio do Bonfim.

Entendo eu que na Avenida da Europa (nada tem a ver com o gostar ou não) que para além da decoração ser visível apenas para alguns, ou seja aqueles que conduzem ou são conduzidos de veículos altos, as estrelas representam um perigo especialmente para quem se desloca ao por do sol no sentido nascente/poente.

Hoje mesmo conduzindo a baixa velocidade, como ali se recomenda, vim quase para cima da rotunda, porque o sol de frente não me permitia qualquer visibilidade.  As afiadas pontas das estrelas estavam ali apontadas como lanças…

Quanto às rotundas frente ao estádio, espero bem que as mesmas não venham a funcionar como depósito de munições para alguns “desportistas” quando as suas equipas perderem com o Vitória.

É que os milhares de pedras soltas que ficarão a decorar o espaço são o que certamente menos desejaria a Polícia de Segurança Pública que acontecesse e não deixa de ser imprudente a sua colocação naquela zona.

Não será por causa destes pormenores que deixarei de gostar das rotundas e muito menos que elas sejam alindadas. Mas, já dizia a minha avozinha: “Quem te avisa teu amigo é!”.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-22

www.troineiro.blogspot.com
Francisco Finura o operário especializado em trabalhos não especializados

No ano em que os Estados Unidos foram confrontados com o crash da Bolsa de Nova Iorque, dando início à grande depressão económica, que tão nefastas consequências originaram em praticamente todo o mundo, era comum as crianças portuguesas começarem bem cedo a familiarizar-se com o mundo do trabalho e, um rapazinho setubalense, com os seus nove anos de idade, não foi exceção.

Foi numa oficina de bicicletas que ele iniciou a atividade laboral e, foi aí também, que viria a tornar-se um afinador dessas populares máquinas. Esta seria a primeira profissão de entre muitas outras que desempenharia ao longo da sua vida.

Francisco Augusto da Silva Finura nascera no bairro de Troino, em Setúbal, no primaveril dia 13 de abril de 1929 e, devido à sua persistência, à sua postura perante a vida e aos seus invulgares e multifacetados talentos havia de ficar conhecido por boa parte dos seus conterrâneos que com ele se cruzaram no decurso do século XX e primeira década do XXI.

Durante dezenas de anos os setubalenses, particularmente os residentes nos Bairros de Troino e Fonte Nova, habituaram-se a conviver com este invulgar conterrâneo conhecido por “Finuras”, entre o povo da sua terra.

De cachimbo preso ao canto da boca e barba à “Popeye”, vestido com o fato-macaco azul, donde sobressaía do bolso superior um vistoso e impecável lenço branco era assim que geralmente se apresentava em público.

Não é pois de admirar que a sua pose e popularidade tivesse despertado a atenção de famosos e talentosos fotógrafos e pintores setubalenses, nomeadamente Américo Ribeiro, Baptista, Maurício de Abreu e Rogério Chora, que tão bem captaram a sua imagem, a qual ficaria gravada para a posteridade graças a estes artistas.

Francisco Finura, geralmente fazia-se transportar pelas ruas de Setúbal numa singular bicicleta, fabricada por si, afirmando ser este o modelo mais adequado, porquanto considerava que “o bom ciclista deve pedalar com a perna esticada”. 

O velocípede tinha um guiador alto, carreto preso, travão sob o assento, permitindo por isso fazer demonstrações de perícia sobre as duas rodas.

E ela era de tal forma cobiçada que, certo dia, alguém furtou a bicicleta e nunca mais a mesma apareceu. Francisco Finura tratou de resolver o problema com a celeridade que o assunto merecia e, colocando mãos ao trabalho, tratou de a substituiu por outra idêntica, devidamente equipada com a característica buzina e a roda traseira maior que a frontal.

De tronco direito, peito saliente, compleição atlética, com pronuncia onde o erre era bem vincado, a forma de falar característica dos setubalenses da zona de Troino, “Finuras” não passava despercebido onde quer que estivesse e, entre a rapaziada dos bairros de Troino e Fonte Nova, a sua figura exercia particular atração e admiração não só devido à distinta pose mas sobretudo às suas diversas habilidades, ficando conhecido como o operário especializado em trabalhos não especializados, como ele próprio se autointitulou.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-22

www.troineiro.blogspot.com

terça-feira, 21 de julho de 2015

Kali! Olha os patos da Mariana...

Mesmo naqueles invernosos dias quando a chuva tornava o velhinho Campo dos Arcos, num verdadeiro lamaçal, podia ver-se ele de mãos nuas, com um balde de cal viva a fazer as marcações do campo, de forma a que ficasse visível as linhas laterais, as duas áreas e todas as demais marcações daquele campo de futebol onde o seu Vitória Futebol Clube jogava.

Artur José Venâncio fazia isso e outros trabalhos no clube por “amor à camisola” não se constando que recebesse algum dinheiro pelos seus serviços. Era um verdadeiro vitoriano e curiosamente familiar do sócio nº 1, José Venâncio, o fundador deste clube.

Quando faleceu, o seu caixão esteve sempre coberto com a bandeira do Vitória clube que tanto amou e a quem tanto deu de forma desinteressada. Uma manifestação que os seus conterrâneos lhe prestaram e o reconhecimento da sua ação por parte do mais representativo clube setubalense.

Se perguntássemos ao vulgar setubalense quem era Artur José Venâncio poucos os nenhuns identificariam “Kali” aquele homem que se irritava solenemente quando os rapazes ou alguns homens lhe gritavam: “Kali! Olha os patos da Mariana…” a que se seguia o inevitável: “quá… quá… quá…”

“Kali” reagia fortemente, por vezes atirando pedras a quem o provocava, ação que era sempre acompanhada com os inevitáveis impropérios.

Na opinião dos seus conterrâneos, aquele popular personagem teria roubado uns patos à Ti Mariana da Tróia e com eles se deliciou num valente petisco, o que de facto não era verdade.

Quem roubou os patos foi um sobrinho daquela senhora, só que na manhã seguinte ao famoso jantar de pato, começaram a dizer que tinham ouvido debaixo da roupa do “Kali” quá…quá…quá… o característico grasnar de pato.

A partir daí nunca mais o pobre homem se livrou do estigma, acusado do que nunca fez e sem que algum pedaço de pato lhe tenha passado pela goela.

O que lhe passava com alguma frequência era sim alguns copos de vinho a mais levando-o ao desequilíbrio e consequentemente a algumas cacetadas dos polícias, pessoas que ele considerava como o diabo. E mesmo quando sentia as bastonadas no corpo ainda se virava para o agente dizendo: “Qué que tu queres pá labasqueiro?”…

A propósito de vinho, contava-se que certo dia o “Kali” quis ir ver um desafio do seu Vitória que jogava fora de casa. Como não tinha pago bilhete do autocarro da excursão tratou de subir sorrateiramente para o tejadilho onde se escondeu entre os cabazes com os farnéis e garrafões de vinho, tapando-se com a lona e protegendo-se com a rede.

Passadas duas ou três horas de viagem deu-lhe vontade de urinar e não esteve com meias medidas, mesmo com os solavancos do autocarro, tratou de aliviar-se. Foi então que um dos passageiros, olhando pela janela,  reparou no líquido que escorria do tejadilho e logo se apressou a chamar a atenção do condutor, para que este parasse a viatura porque um dos garrafões de vinho branco estaria a entornar.

Lá foram todos numa correria lá acima, preocupados com o vinho e descobriram que afinal era o “Kali”. Recolheram-no, acabando o bom homem por fazer o resto da viagem sentado no interior do autocarro.

Provavelmente a imagem que mais marcou os setubalenses foi aquela, lamentavelmente promovida sobre a égide da autarquia, ocorrida no decurso do carnaval de Setúbal, em 1968, quando desfilou encerrado numa jaula e com uma gaiola com patos em cima da mesma, para alarve diversão de uma multidão que gritava: “Kali! Olha os patos da Mariana” ao que este irritado e impotente insultava e praguejava.

O povo respondia com “trapada” e atiçava-o ainda mais imitando o grasnar dos patos que outros tinham roubado e comido: “quá…quá…quá”.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-21

www.troineiro.blogspot.com

segunda-feira, 20 de julho de 2015

"MEIRIM" Uma figura que não esqueceremos



Fervoroso adepto do Futebol Clube os Belenenses era comum vermos o Meirim pelas ruas da cidade, altamente concentrado no que dizia, como se estivesse a falar ao microfone de uma qualquer rádio nacional.

Na Praça do Bocage, junto ao extinto café Brasileira, Meirim gostava de exibir os seus dotes de toureiro imitando o conhecido Manuel dos Santos com os seus artísticos e elegantes passos. Porém era ao futebol que mais atenção dedicava.

Normalmente ia andando calmamente pelas ruas relatando um jogo de futebol e de tal forma se entusiasmava que eram muitos aqueles que paravam para o escutar enquanto as suas palavras nos transportavam para um qualquer imaginário jogo em que o Zé Marria, passava a bola ao JJ e este com um remate certeiro metia mais um belo golo.

Era comum ele ir fazer os seus relatos por baixo das janelas do Hotel Esperança quando a equipa do Vitória Futebol Clube ali se encontrava em estágio.

Certo dia, na esplanada do Esperança, quando este “repórter” estava a relatar entusiasticamente um importante jogo entre o Sporting e o Belenenses alguém que não gostou do ruído, por maldade, ou por brincadeira, despejou lá de cima um alguidar de água que veio encharcar o pobre relatador.

Meirim manteve uma calma impressionante perante tão inesperado acontecimento, tratando de imediato de transmitir aos seus “rádio” ouvintes que naquele preciso momento tinha começado  a chover torrencialmente no Estádio de Alvalade.
Por alturas da Volta a Portugal em Bicicleta, o nosso repórter mal acabava qualquer etapa tratava de transmitir o resumo da mesma, tendo o famoso ciclista Joaquim Agostinho como figura de destaque.

Em 2012 Luís Filipe Estrela, foi encontrar o “Meirim” no Lar Dr. Paula Borba, e fotografou-o com um ar agradável a despeito da doença lhe ter levado uma perna e um leão o braço, quando um dia foi fazer uma festa ao animal que se encontrava num circo na Praça de Portugal em Setúbal.

Já a “Meirim” o poeta João Faleiro Paixão dedicou este poema:

“MEIRIM”

Era raro quem passava
E não sorria ao escutar
O “jogo” que estava a “dar”
Que ele tão bem relatava

Belenenses de coração
 Quis a sorte que o coitado
Visse um braço dilacerado
Pelas garras dum leão

No “Esperança” recordo bem
Atingido certeiramente
por um balde de água que
alguém

atirou maldosamente...
“Relatava” que em Belém
Chovia torrencialmente


 25/08/1999
João Paixão

PUBLICADO EM 29/9/99

Rui Canas Gaspar
2015-julho-20
www.troineiro.blogspot.com

domingo, 19 de julho de 2015

“Estou em Setúbal, cidade maravilhosa!”

Às 10 da manhã deste domingo 19 de julho os fortes raios de sol já incomodavam quem se aventurasse pelas ruas de Setúbal sem a adequada proteção.

Estacionei o carro na Avenida General Daniel de Sousa e quando me preparava para abandonar o parque de estacionamento reparei que dois carros à frente, entre viaturas, se encontrava um homem aparentando ter na casa dos trinta anos, deitado no chão de barriga para o ar, braços abertos e com uma perna dentro da viatura e outra de fora, encontrando-se o telemóvel ao lado e a chave do carro na ignição.

Eram muitas as viaturas que passavam por aquela movimentada artéria, sem que, pelos vistos, ninguém se apercebesse daquela inusitada situação.

O homem parecia estar vivo mas não se mexia, também não reagiu ao meu chamamento, pelo que de imediato liguei para a linha de emergência 112 descrevendo a ocorrência o mais pormenorizadamente possível.

Entretanto, chegaram ali alguns membros de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias que iam frequentar as reuniões na sua capela, no outro lado da avenida, e logo rodearam o homem de forma a fazer uma barreira natural para o proteger do sol que incidia sobre a sua cabeça.

Alguns minutos depois ouviam-se as sirenes de duas rápidas viaturas de emergência, uma VMER (viatura Médica de Emergência Rápida) e uma ambulância de socorro, que ao meu sinal pararam, inteiraram-se da situação e de imediato trataram de proceder às necessárias manobras de socorro.

O assunto estava entregue a quem teria competência para o resolver, nada mais tendo que fazer ali. A minha parte estava feita.

Antes de me retirar ainda vi o homem reagir às manobras médicas e responder a uma pergunta da clínica questionando-o se sabia onde estava.

Com voz arrastada, como se estivesse alcoolizado, dizia que não precisava de nada e que sabia que estava em “Setúbal, cidade maravilhosa”.

Veio-me logo à mente a enorme festa que decorreu ontem à noite na cidade, o “Samba na Avenida” com o desfile de várias escolas de samba caricaturando o Rio de Janeiro, a tal cidade maravilhosa e os festejos que para muitos acabam da pior maneira devido aos excessos.

Os socorristas acabaram por levar o homem para o Hospital de São Bernardo para melhor observação e eu fui à minha vida pensando que se não tivesse aparecido por ali e não tivesse tido a ajuda dos outros amigos que com o próprio corpo o protegeram dos fortes raios solares, talvez este homem não tivesse agora tanta certeza de que estaria em Setúbal a tal cidade maravilhosa.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-19

www.troineiro.blogspot.com