Kali! Olha os patos da
Mariana...
Mesmo
naqueles invernosos dias quando a chuva tornava o velhinho Campo dos Arcos, num
verdadeiro lamaçal, podia ver-se ele de mãos nuas, com um balde de cal viva a fazer
as marcações do campo, de forma a que ficasse visível as linhas laterais, as
duas áreas e todas as demais marcações daquele campo de futebol onde o seu
Vitória Futebol Clube jogava.
Artur
José Venâncio fazia isso e outros trabalhos no clube por “amor à camisola” não
se constando que recebesse algum dinheiro pelos seus serviços. Era um
verdadeiro vitoriano e curiosamente familiar do sócio nº 1, José Venâncio, o
fundador deste clube.
Quando
faleceu, o seu caixão esteve sempre coberto com a bandeira do Vitória clube que
tanto amou e a quem tanto deu de forma desinteressada. Uma manifestação que os
seus conterrâneos lhe prestaram e o reconhecimento da sua ação por parte do
mais representativo clube setubalense.
Se
perguntássemos ao vulgar setubalense quem era Artur José Venâncio poucos os
nenhuns identificariam “Kali” aquele homem que se irritava solenemente quando
os rapazes ou alguns homens lhe gritavam: “Kali! Olha os patos da Mariana…” a
que se seguia o inevitável: “quá… quá… quá…”
“Kali”
reagia fortemente, por vezes atirando pedras a quem o provocava, ação que era
sempre acompanhada com os inevitáveis impropérios.
Na
opinião dos seus conterrâneos, aquele popular personagem teria roubado uns
patos à Ti Mariana da Tróia e com eles se deliciou num valente petisco, o que
de facto não era verdade.
Quem
roubou os patos foi um sobrinho daquela senhora, só que na manhã seguinte ao
famoso jantar de pato, começaram a dizer que tinham ouvido debaixo da roupa do
“Kali” quá…quá…quá… o característico grasnar de pato.
A
partir daí nunca mais o pobre homem se livrou do estigma, acusado do que nunca
fez e sem que algum pedaço de pato lhe tenha passado pela goela.
O
que lhe passava com alguma frequência era sim alguns copos de vinho a mais levando-o
ao desequilíbrio e consequentemente a algumas cacetadas dos polícias, pessoas
que ele considerava como o diabo. E mesmo quando sentia as bastonadas no corpo
ainda se virava para o agente dizendo: “Qué que tu queres pá labasqueiro?”…
A
propósito de vinho, contava-se que certo dia o “Kali” quis ir ver um desafio do
seu Vitória que jogava fora de casa. Como não tinha pago bilhete do autocarro
da excursão tratou de subir sorrateiramente para o tejadilho onde se escondeu
entre os cabazes com os farnéis e garrafões de vinho, tapando-se com a lona e
protegendo-se com a rede.
Passadas
duas ou três horas de viagem deu-lhe vontade de urinar e não esteve com meias
medidas, mesmo com os solavancos do autocarro, tratou de aliviar-se. Foi então
que um dos passageiros, olhando pela janela, reparou no líquido que escorria do tejadilho e
logo se apressou a chamar a atenção do condutor, para que este parasse a
viatura porque um dos garrafões de vinho branco estaria a entornar.
Lá
foram todos numa correria lá acima, preocupados com o vinho e descobriram que
afinal era o “Kali”. Recolheram-no, acabando o bom homem por fazer o resto da
viagem sentado no interior do autocarro.
Provavelmente
a imagem que mais marcou os setubalenses foi aquela, lamentavelmente promovida
sobre a égide da autarquia, ocorrida no decurso do carnaval de Setúbal, em
1968, quando desfilou encerrado numa jaula e com uma gaiola com patos em cima
da mesma, para alarve diversão de uma multidão que gritava: “Kali! Olha os
patos da Mariana” ao que este irritado e impotente insultava e praguejava.
O
povo respondia com “trapada” e atiçava-o ainda mais imitando o grasnar dos
patos que outros tinham roubado e comido: “quá…quá…quá”.
Rui Canas Gaspar
2015-julho-21
www.troineiro.blogspot.com
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