Era eu um jovem que tinha acabado poucos dias antes de cumprir o
serviço militar obrigatório, servindo uma comissão militar de 27 meses na
Guiné, quando escrevi para o jornal “O Setubalense”, o texto que abaixo
reproduzo, publicado naquele jornal em 22 de dezembro de 1972.
Os anos passam mas as memórias ficam e, não passa um Natal sem que
deixe de recordar aquela noite de consoada partilhada com os meus camaradas de
armas no aquartelamento da pequena povoação de Bijene, vindo-me à mente aqueles
que ainda hoje se encontram nestas circunstâncias num qualquer recanto do
mundo.
Troam os canhões
É NATAL !
O céu azul-escuro, todo
estrelado, convidava ao amor!
A quietude da noite, a brisa
suave e quente abanava levemente as palmeiras e mangueiros. Como era diferente
aquela noite de Natal!
Habituados como estávamos, a ter
nesta quadra o tempo frio e chuvoso, aquela brisa agradável despertava em nós
sentimentos diferentes. Éramos um punhado de jovens aquartelados numa pequena
povoação algures na fronteira norte da Guiné.
Ensaiamos algumas canções
natalícias, escutistas e populares, com os nossos camaradas. Decoramos as
toscas mesas com telas de sinalização, fizemos estrelas com invólucros de maços
de cigarros, colamos postais de “boas festas” e armamos uma árvore de natal,
que não era pinheiro mas sim um mangueiro.
Sentimentos comuns nos uniam; a
fraternidade, a solidão e a bela quadra festiva que estávamos vivendo.
Pouco antes da meia noite,
começamos a preparar a ceia. Garrafas de
bebidas várias iam surgindo, iguarias próprias da quadra eram postas em comum.
Oh! Como é belo viver em paz e ter este sentimento de fraternidade… Porém, para
além de toda a beleza, de toda a paz aparente, os espíritos de todos estavam
alerta e, de vez em quando, o olhar desviava-se para a cerca de arame farpado
por detrás da qual estava o mato, a bolanha, o perigo.
Lá longe, a muitos milhares de
quilómetros, festejava-se a festa da família, família à qual todos
pertencíamos, e que naquele momento, naquelas longas horas, o nosso pensamento
voava para o conforto do lar. O nosso corpo estava em África, mas os nossos
corações estavam na Metrópole.
Na Metrópole, onde os sinos
convidavam à oração de Natal, onde os cânticos belos convidavam as pessoas a
serem boas (pelo menos nesse dia), e nós, naquela pequena povoação, sem sinos e
sem cânticos a convidar ao amor, teimávamos em aliar aquela Santa Noite à Paz.
Meia-noite. Na Metrópole,
repicavam os sinos. Os lares festejavam o Natal, o nascimento de Jesus, aquele
que veio ao mundo para nos trazer a paz. Na terra sem sinos, onde nos
encontrávamos, três potentes obuses abriam fogo.
As diabólicas “bocas do inferno”
faziam ouvir a sua voz poderosa, arrasando com a sua força brutal, todos os
meios de vida ao seu alcance.
E nós, mesquinhos e
simultaneamente terríveis seres, cantando cânticos de paz e amor à mesma hora
em que os sinos repicavam, fazíamos com que aquelas terríveis armas fizessem
ouvir o seu estrondo medonho, a fim de permitirem que as nossas pobres
gargantas cantassem em paz tão lindos cânticos de amor.
A noite de Natal findou. Aleluia!
Jesus nasceu, e nós não fomos atacados. Estávamos vivos!
Aqui, na Metrópole, cantam os
sinos! Todos cantamos, de uma forma ou de outra. A roda giratória não para; uns
que vão outros que vêm, ficando no conforto do lar.
Pensando nos que lá estão, e que
não ouvem os sinos, juntamos a nossa voz aos que, de todo o coração vos desejam
Santo Natal.”
Rui Canas Gaspar
11-dezembro-2014
www.troineiro.blogspot.com
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