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domingo, 18 de junho de 2017

Adeus Setúbal 

Batizaram-me em 18 de julho de 1931 com o nome de “EVORA” e sou alemão de nascimento, porém é ao povo português que entreguei o meu coração desde que naquele dia de verão entrei nas águas do Báltico. 

 Com ele tenho convivido ao longo das dezenas de anos, iniciando-se a nossa íntima relação logo após ter sido dado à luz no distante fiord de Kiel, na Alemanha. 

Já em pleno inverno, encetei a viagem de uma semana pelo Oceano Atlântico, nem sempre calmo, diga-se de passagem, navegando desde o local do meu nascimento até Portugal. Por aqui tendo ficado e trabalhado arduamente, ou não fosse eu um forte barco construído com chapas recicladas de carros de combate utilizados na Primeira Grande Guerra. 

Tive a grata missão de transportar as mais diversas pessoas: umas de origem humilde, outras figuras importantes, de uma para a outra margem do Rio Tejo, orgulhando-me de ser o barco que mais gente passei de uma para a outra banda. 

Todos gostavam de mim e eu próprio também tinha muito orgulho na minha pessoa, não por ser narcisista, mas porque quando jovem, era de facto bonito, o mais rápido no Tejo, muito asseado, o único que aqui usava motor diesel. Ninguém, em todo o mundo, tinha hélices como as minhas, fabricadas em aço inoxidável, um material ainda pouco conhecido naquela época. 

Trabalhei duramente durante muitos anos no transporte de pessoas entre o Barreiro e Lisboa até que pouco depois da revolução de 25 de abril de 1974 prescindiram dos meus serviços, dizendo que eu estava velho demais, imaginem!... 

Encostaram-me a um velho cais e para ali estive triste e abandonado e quase condenado à morte não fora um setubalense que me viu e me salvou e me trouxe para o belo rio azul naquele ano de 1990. 

Depois de recuperado por aqui andei com os meus amigos golfinhos, de vez em quando ia até ao Tejo fazer uns serviços, mas regressava sempre às águas azuis do nosso Sado. 

Certo dia, em 2017, um alfacinha enamorou-se de mim e comprou-me, levando-me de volta ao Tejo onde agora ao som do fado transporto turistas e visitantes da bela capital portuguesa, embora reconheça que estas águas nada tem a ver com aquelas outras que me acolheram ao longo de cerca de um quarto de século. 

A vida tem destas coisas e sabe-se lá quantos mais anos ainda andarei por cá e o que será que a vida me reserva. 

Resta-me despedir-me dos meus bons amigos, sobretudo daqueles que gostavam tanto de mim que me alcunharam do “Cisne branco do Sado” e que carinhosamente usaram os meus serviços onde juntos desfrutamos do nosso belo rio azul. 

Rui Canas Gaspar

2017-junho-18

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