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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

E assim começava o ano novo em Setúbal

Era o tempo em que os homens não iam ao mar. Estávamos em pleno defeso da pesca da sardinha e se não pescavam não ganhavam e se não vinha dinheiro era complicado fazer frente às inadiáveis despesas básicas.

As mulheres também não iam trabalhar nas fábricas de conserva de peixe porque essas também se encontravam paradas neste período por falta de matéria-prima e, como tal, também mesmo com os seus magros proventos não poderiam ajudar nas despesas domésticas.

Alguns conseguiam que as mercearias lhes dessem fiado, outros recorriam aos prestamistas a quem empenhavam o pouco que tinham ou que pediam emprestado para o fazer, de forma a conseguir o dinheiro para comprar alguma comida e para comprar o carvão para acender o fogareiro ou adquirir um pouco de petróleo para o fogão.

Outros mais previdentes tinham posto a secar uns cações, apanhados uns meses antes, que agora comiam como se fosse bacalhau acompanhado com umas batatinhas compradas ao “tio Isidoro” que com o seu burro vinha lá das bandas de Palmela vender os seus produtos. Era um ótimo manjar de fim de ano…

Quando chegava a meia-noite havia festa rija. Era o ano velho que partia e o novo era suposto mostrar-se mais farto, pelo que o melhor era mesmo cumprir a tradição e mandar pela janela fora algum tacho de barro que já não estivesse em condições, um prato falhado, ou qualquer objeto de uso doméstico que já se considerasse de pouca utilidade.

Tudo isso era feito ao som de dezenas de tampas de tachos ou panelas a bater uns nos outros, e aquele que tivesse o relógio mais certo, ou mais apressado, era o que começava e logo todas as janelas de Troino se abriam e o chinfrim fazia-se ouvir por toda a cidade de Setúbal.

Não foi nem uma nem duas vezes que o azar bateu à porta de algum menos avisado, que deambulando pelas ruas mal iluminadas, com ou sem um copinho a mais, levaria com um desses objetos na cabeça.

Era assim a passagem do ano em Setúbal há cerca de meio século, quando a generalidade das casas não dispunham de frigorífico, máquina de lavar, fogão a gás, ou até mesmo casa de banho e a higiene (semanal) era feita dentro de uma grande bacia ou alguidar colocado na cozinha.

O fogo-de-artifício apenas existia na fértil imaginação das crianças e a música era ouvida pela generalidade dos vizinhos à porta de um deles que tinha adquirido uma telefonia com onda marítima para poder escutar as comunicações dos barcos de pesca e que também servia para ouvir os folhetins radiofónicos e uns fadinhos que a D. Amália tão bem sabia cantar.

Os tempos mudaram, felizmente, e mesmo em crise, o pessoal lá vai para a festança da passagem do ano, cada um de acordo com o seu gosto ou com a sua bolsa, mas com o mesmo sentimento de antigamente que o próximo ano possa vir a ser melhor que este.

Outros setubalenses também  não deixarão de vestir umas cuecas novas, de cor azul, como mandava a tradição, outros ainda envergarão sabe-se lá o quê, provavelmente uma tanga!...

Rui Canas Gaspar
31-dezembro-2015

www.troineiro.blogspot.com

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