E assim começava o ano
novo em Setúbal
Era
o tempo em que os homens não iam ao mar. Estávamos em pleno defeso da pesca da
sardinha e se não pescavam não ganhavam e se não vinha dinheiro era complicado
fazer frente às inadiáveis despesas básicas.
As
mulheres também não iam trabalhar nas fábricas de conserva de peixe porque
essas também se encontravam paradas neste período por falta de matéria-prima e,
como tal, também mesmo com os seus magros proventos não poderiam ajudar nas
despesas domésticas.
Alguns
conseguiam que as mercearias lhes dessem fiado, outros recorriam aos
prestamistas a quem empenhavam o pouco que tinham ou que pediam emprestado para
o fazer, de forma a conseguir o dinheiro para comprar alguma comida e para comprar
o carvão para acender o fogareiro ou adquirir um pouco de petróleo para o
fogão.
Outros
mais previdentes tinham posto a secar uns cações, apanhados uns meses antes, que
agora comiam como se fosse bacalhau acompanhado com umas batatinhas compradas
ao “tio Isidoro” que com o seu burro vinha lá das bandas de Palmela vender os
seus produtos. Era um ótimo manjar de fim de ano…
Quando
chegava a meia-noite havia festa rija. Era o ano velho que partia e o novo era
suposto mostrar-se mais farto, pelo que o melhor era mesmo cumprir a tradição e
mandar pela janela fora algum tacho de barro que já não estivesse em condições,
um prato falhado, ou qualquer objeto de uso doméstico que já se considerasse de
pouca utilidade.
Tudo
isso era feito ao som de dezenas de tampas de tachos ou panelas a bater uns nos
outros, e aquele que tivesse o relógio mais certo, ou mais apressado, era o que
começava e logo todas as janelas de Troino se abriam e o chinfrim fazia-se
ouvir por toda a cidade de Setúbal.
Não
foi nem uma nem duas vezes que o azar bateu à porta de algum menos avisado, que
deambulando pelas ruas mal iluminadas, com ou sem um copinho a mais, levaria
com um desses objetos na cabeça.
Era
assim a passagem do ano em Setúbal há cerca de meio século, quando a
generalidade das casas não dispunham de frigorífico, máquina de lavar, fogão a
gás, ou até mesmo casa de banho e a higiene (semanal) era feita dentro de uma
grande bacia ou alguidar colocado na cozinha.
O
fogo-de-artifício apenas existia na fértil imaginação das crianças e a música
era ouvida pela generalidade dos vizinhos à porta de um deles que tinha
adquirido uma telefonia com onda marítima para poder escutar as comunicações
dos barcos de pesca e que também servia para ouvir os folhetins radiofónicos e
uns fadinhos que a D. Amália tão bem sabia cantar.
Os
tempos mudaram, felizmente, e mesmo em crise, o pessoal lá vai para a festança
da passagem do ano, cada um de acordo com o seu gosto ou com a sua bolsa, mas com
o mesmo sentimento de antigamente que o próximo ano possa vir a ser melhor que
este.
Outros setubalenses também não deixarão de vestir umas cuecas novas, de cor azul, como mandava
a tradição, outros ainda envergarão sabe-se lá o quê, provavelmente uma tanga!...
Rui
Canas Gaspar
31-dezembro-2015
www.troineiro.blogspot.com
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