Memórias de Troino
Chegadas à Fonte Nova
(Praça Machado dos Santos) subiam um pouco pela Rua José Adelino dos Santos e,
frente à Travessa da Bela Vista, paravam naquela antiga construção conventual,
conhecida entre os habitantes locais pela “eira da cal”.
Lembro-me daquele
lugar “esquisito” como se fossem as instalações de uma igreja (provavelmente
teria sido) ou uma enorme e alta gruta onde a brancura imperava fruto de
toneladas de pedras de cal que ali eram descarregadas e que posteriormente
saíam para branquear e desinfetar as casas do nosso bairro.
A memória remete-me
para a figura da única pessoa que dominava aquele alvo local, o popularmente
conhecido Ti David. Um homem já de certa idade, mediano de altura, barriga
avantajada, que vestia colete preto sobre a branca camisa e protegia a cabeça
com chapéu. Era ele que pesava as pedras de cal numa velha balança colocada ao
fundo daquela casa e que os clientes traziam dentro de uma alcofa.
Lembro-me de que a
generalidade das moças e das jovens mulheres troineiras, a quem geralmente era cometida a tarefa de ir
comprar a cal e prepará-la para branquear as casas, tinham alguma relutância em
ir àquele local, porque o Ti David, segundo se dizia se “metia com elas”.
Era o tempo em que
ali mesmo ao lado, onde hoje se localiza o “prédio da Fiat” entre a Travessa da
Bela Vista e a General Daniel de Sousa as águas corriam límpidas para o tanque
da Horta da Geménia, um local onde as mesmas mulheres iam desencardir a roupa e
onde muitas das minhas fraldas foram lavadas logo nas primeiras águas.
Também aqui, a tal
Geménia era figura bem popular por todo o bairro, por, ao que se dizia, gostar
de pessoas do mesmo sexo, um “atrevimento” então muito pouco divulgado na cidade
sadina até meados do século passado.
Setúbal cresceu, a
Geménia faleceu tal como o Ti David, com eles desapareceram também o tanque para
onde a água corria lavando as roupas dos homens do mar e suas famílias, tal
como a eira da cal seria demolida para dar lugar a um edifício de apartamentos.
Na minha e noutras
memórias de antigos setubalenses nascidos e criados naquela típica zona de
Troino perduram estas coisas de tempos passados, onde as figuras como a
Geménia, o Ti David e tantos outros faziam parte da nossa realidade e do nosso imaginário
infantil.
Rui Canas Gaspar
2016-maio-01
www.troineiro.blogspot.com
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