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quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Visitando o que resta da Fábrica Vasco da Gama

A manhã deste primeiro dia do ano de 2014 apresentava-se cinzenta, ameaçando chover. A temperatura do ar estava agradável quando me dirigi para a Estrada da Graça. Pouco depois da Pedra Furada e a cerca de um quilómetro da passagem de nível da Cachofara parei junto àquele que tinha definido como meu objetivo matinal.

No último dia do ano tinha chovido bastante e aquela zona quase se tinha tornado intransitável, mesmo para as viaturas. Porém a água tinha escoado e a estrada apresentava-se agora limpa e desimpedida.

Parei o carro e com uma máquina fotográfica na mão e outra no bolso, como medida de precaução e segurança, comecei por apreciar o exterior daquela imensa ruina onde em tempos não muito distantes centenas de pessoas trabalharam, produzindo as mais deliciosas conservas de peixe.

A Fábrica de Conservas Vasco da Gama foi uma das últimas unidades a deixar de laborar em Setúbal por volta do ano de 1995, vindo posteriormente as suas desocupadas instalações a ser alvo de vandalismo que paulatinamente tudo foi destruindo até chegar ao atual estado de degradação.

Alguns marginais e pessoas sem-abrigo foram ocupando as instalações até que passado algum tempo um incêndio destruiu parte daquele espaço particularmente a área ocupada pelo setor administrativo.

A ampla zona laboral, com cerca de uma centena de metros de comprimento, por se encontrar destelhada, não é muito apetecível para ser ocupada como dormitório. Todavia o mesmo não se passa com as suas grandes paredes que constituem só por si um enorme atrativo para os grafiteiros.

E se há por ali muita coisa riscada, inestética e sem o mínimo bom gosto, onde parece que o objetivo foi somente gastar tinta, o facto é que também se encontram alguns belos exemplares desta arte de rua.

O que mais incomoda ver em relação aos grafites é que os seus autores geralmente pouco respeito têm pela base onde vão exercer a sua arte e assim as pinturas podem encontrar-se quer nas paredes rebocadas ou mesmo por cima de painéis de azulejos decorativos.

Posteriormente novo incêndio ali ocorreria começando no primeiro andar das desocupadas instalações administrativas e propagando-se ao rés-do-chão deste edifício auxiliar.

Embora os 18 bombeiros apoiados por oito viaturas de combate ao fogo tenham acorrido rapidamente ao local, evitando que o sinistro se propagasse aos edifícios adjacentes, isso não foi o suficiente para salvar da morte, presumivelmente por intoxicação, dois homens de nacionalidade ucraniana que tudo indicia ali tivessem o seu precário abrigo.

Ainda cá fora, atentamente,  observei o interior das instalações, após o que me dispus a entrar tendo o cuidado de ver bem onde colocava os pés, deslocando-me por um carreiro entre uma enorme pilha de lixo que indiciava ter havido ali grande ocupação.

O primeiro ser vivo que me veio cumprimentar foi um simpático rato que pareceu estar habituado aos seres humanos, dado que não manifestou grande intenção de sair dali. Provavelmente até teria razão. Ele estava em casa, eu é que era o intruso.

Caminhei de forma a evitar fazer qualquer ruido assentando primeiro o calcanhar e só depois o resto do pé, embora com tantos cacos, vidros partidos e demais obstáculos fosse difícil não produzir algum som.

Curiosamente, embora o último incêndio tivesse deflagrado há já alguns anos o cheiro a queimado ainda era bem perceptível junto às instalações sinistradas onde estranhos ruídos me despertaram a atenção,  levando-me a olhar para o local tentando perceber a sua origem. Sons que mais não eram do que provenientes das gotas de água da chuva que pingavam sobre os sacos de plástico por ali espalhados.

Restos de azulejos decorativos indiciavam que teria havido algum cuidado com o aspeto estético e não só fabril de quem projetou aquelas enormes instalações onde certamente muitas jovens mulheres trabalharam, riram e ganharam o seu sustento.

Um cabo elétrico no chão despertou a minha atenção e ao segui-lo com o vista reparei que o mesmo entrava por uma janela que em tempos teria tido vidros. Segui o cabo e conclui que o mesmo atravessava as instalações para sair por outra janela no sentido oposto e seguir na direção do campo nas traseiras do edifício onde estão algumas instalações de construção precária. Tratava-se de uma puxada elétrica a partir da instalação de iluminação pública.

De novo sou surpreendido com um estranho ruido, como se se tratasse de passos vindos de uma das divisões de apoio à produção. O som deixou-me alerta, pelo que, cautelosa e sem fazer barulho caminhei na sua direção para ver quem estaria por ali.

Afinal eram seis cabras que tinham entrado por uma janela e agora andavam pelas instalações a comer os tufos de arbustos que vão aparecendo entre as placas do pavimento.

A chaminé da Vasco da Gama ergue-se agora silenciosa e sem sinais de fumaça na direção do céu como que a pedir as bênçãos do divino, enquanto o seu enorme reservatório morre de sede por falta de água.

Neste enorme espaço onde outrora ouve vida, alegria e produção, reina agora o silêncio, a destruição e o cheiro da morte, não só de pessoas mas também de uma indústria que alimentou milhões de seres humanos, com matéria-prima nacional, captada no nosso imenso e desaproveitado mar.











































Rui Canas Gaspar

2014-jan-01

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