notícias, pensamentos, fotografias e comentários de um troineiro

domingo, 1 de maio de 2016

Memórias de Troino

Dizem alguns dos mais antigos setubalenses que as carroças carregadas de pedras de cal que chegavam ao Bairro de Troino, até ao início dos anos sessenta do século passado, vinham dos lados do Pinhal Novo.

Chegadas à Fonte Nova (Praça Machado dos Santos) subiam um pouco pela Rua José Adelino dos Santos e, frente à Travessa da Bela Vista, paravam  naquela antiga construção conventual, conhecida entre os habitantes locais pela “eira da cal”.

Lembro-me daquele lugar “esquisito” como se fossem as instalações de uma igreja (provavelmente teria sido) ou uma enorme e alta gruta onde a brancura imperava fruto de toneladas de pedras de cal que ali eram descarregadas e que posteriormente saíam para branquear e desinfetar as casas do nosso bairro.

A memória remete-me para a figura da única pessoa que dominava aquele alvo local, o popularmente conhecido Ti David. Um homem já de certa idade, mediano de altura, barriga avantajada, que vestia colete preto sobre a branca camisa e protegia a cabeça com chapéu. Era ele que pesava as pedras de cal numa velha balança colocada ao fundo daquela casa e que os clientes traziam dentro de uma alcofa.

Lembro-me de que a generalidade das moças e das jovens mulheres troineiras,  a quem geralmente era cometida a tarefa de ir comprar a cal e prepará-la para branquear as casas, tinham alguma relutância em ir àquele local, porque o Ti David, segundo se dizia se “metia com elas”.

Era o tempo em que ali mesmo ao lado, onde hoje se localiza o “prédio da Fiat” entre a Travessa da Bela Vista e a General Daniel de Sousa as águas corriam límpidas para o tanque da Horta da Geménia, um local onde as mesmas mulheres iam desencardir a roupa e onde muitas das minhas fraldas foram lavadas logo nas primeiras águas.

Também aqui, a tal Geménia era figura bem popular por todo o bairro, por, ao que se dizia, gostar de pessoas do mesmo sexo, um “atrevimento” então muito pouco divulgado na cidade sadina até meados do século passado.

Setúbal cresceu, a Geménia faleceu tal como o Ti David, com eles desapareceram também o tanque para onde a água corria lavando as roupas dos homens do mar e suas famílias, tal como a eira da cal seria demolida para dar lugar a um edifício de apartamentos.

Na minha e noutras memórias de antigos setubalenses nascidos e criados naquela típica zona de Troino perduram estas coisas de tempos passados, onde as figuras como a Geménia, o Ti David e tantos outros faziam parte da nossa realidade e do nosso imaginário infantil.

Rui Canas Gaspar
2016-maio-01

www.troineiro.blogspot.com

Sem comentários:

Enviar um comentário