Memórias de Troino
Dizem alguns dos
mais antigos setubalenses que as carroças carregadas de pedras de cal que
chegavam ao Bairro de Troino, até ao início dos anos sessenta do século passado,
vinham dos lados do Pinhal Novo.
Chegadas à Fonte Nova
(Praça Machado dos Santos) subiam um pouco pela Rua José Adelino dos Santos e,
frente à Travessa da Bela Vista, paravam naquela antiga construção conventual,
conhecida entre os habitantes locais pela “eira da cal”.
Lembro-me daquele
lugar “esquisito” como se fossem as instalações de uma igreja (provavelmente
teria sido) ou uma enorme e alta gruta onde a brancura imperava fruto de
toneladas de pedras de cal que ali eram descarregadas e que posteriormente
saíam para branquear e desinfetar as casas do nosso bairro.
A memória remete-me
para a figura da única pessoa que dominava aquele alvo local, o popularmente
conhecido Ti David. Um homem já de certa idade, mediano de altura, barriga
avantajada, que vestia colete preto sobre a branca camisa e protegia a cabeça
com chapéu. Era ele que pesava as pedras de cal numa velha balança colocada ao
fundo daquela casa e que os clientes traziam dentro de uma alcofa.
Lembro-me de que a
generalidade das moças e das jovens mulheres troineiras, a quem geralmente era cometida a tarefa de ir
comprar a cal e prepará-la para branquear as casas, tinham alguma relutância em
ir àquele local, porque o Ti David, segundo se dizia se “metia com elas”.
Era o tempo em que
ali mesmo ao lado, onde hoje se localiza o “prédio da Fiat” entre a Travessa da
Bela Vista e a General Daniel de Sousa as águas corriam límpidas para o tanque
da Horta da Geménia, um local onde as mesmas mulheres iam desencardir a roupa e
onde muitas das minhas fraldas foram lavadas logo nas primeiras águas.
Também aqui, a tal
Geménia era figura bem popular por todo o bairro, por, ao que se dizia, gostar
de pessoas do mesmo sexo, um “atrevimento” então muito pouco divulgado na cidade
sadina até meados do século passado.
Setúbal cresceu, a
Geménia faleceu tal como o Ti David, com eles desapareceram também o tanque para
onde a água corria lavando as roupas dos homens do mar e suas famílias, tal
como a eira da cal seria demolida para dar lugar a um edifício de apartamentos.
Na minha e noutras
memórias de antigos setubalenses nascidos e criados naquela típica zona de
Troino perduram estas coisas de tempos passados, onde as figuras como a
Geménia, o Ti David e tantos outros faziam parte da nossa realidade e do nosso imaginário
infantil.
Rui Canas Gaspar
2016-maio-01
www.troineiro.blogspot.com
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