notícias, pensamentos, fotografias e comentários de um troineiro

terça-feira, 21 de julho de 2015

Kali! Olha os patos da Mariana...

Mesmo naqueles invernosos dias quando a chuva tornava o velhinho Campo dos Arcos, num verdadeiro lamaçal, podia ver-se ele de mãos nuas, com um balde de cal viva a fazer as marcações do campo, de forma a que ficasse visível as linhas laterais, as duas áreas e todas as demais marcações daquele campo de futebol onde o seu Vitória Futebol Clube jogava.

Artur José Venâncio fazia isso e outros trabalhos no clube por “amor à camisola” não se constando que recebesse algum dinheiro pelos seus serviços. Era um verdadeiro vitoriano e curiosamente familiar do sócio nº 1, José Venâncio, o fundador deste clube.

Quando faleceu, o seu caixão esteve sempre coberto com a bandeira do Vitória clube que tanto amou e a quem tanto deu de forma desinteressada. Uma manifestação que os seus conterrâneos lhe prestaram e o reconhecimento da sua ação por parte do mais representativo clube setubalense.

Se perguntássemos ao vulgar setubalense quem era Artur José Venâncio poucos os nenhuns identificariam “Kali” aquele homem que se irritava solenemente quando os rapazes ou alguns homens lhe gritavam: “Kali! Olha os patos da Mariana…” a que se seguia o inevitável: “quá… quá… quá…”

“Kali” reagia fortemente, por vezes atirando pedras a quem o provocava, ação que era sempre acompanhada com os inevitáveis impropérios.

Na opinião dos seus conterrâneos, aquele popular personagem teria roubado uns patos à Ti Mariana da Tróia e com eles se deliciou num valente petisco, o que de facto não era verdade.

Quem roubou os patos foi um sobrinho daquela senhora, só que na manhã seguinte ao famoso jantar de pato, começaram a dizer que tinham ouvido debaixo da roupa do “Kali” quá…quá…quá… o característico grasnar de pato.

A partir daí nunca mais o pobre homem se livrou do estigma, acusado do que nunca fez e sem que algum pedaço de pato lhe tenha passado pela goela.

O que lhe passava com alguma frequência era sim alguns copos de vinho a mais levando-o ao desequilíbrio e consequentemente a algumas cacetadas dos polícias, pessoas que ele considerava como o diabo. E mesmo quando sentia as bastonadas no corpo ainda se virava para o agente dizendo: “Qué que tu queres pá labasqueiro?”…

A propósito de vinho, contava-se que certo dia o “Kali” quis ir ver um desafio do seu Vitória que jogava fora de casa. Como não tinha pago bilhete do autocarro da excursão tratou de subir sorrateiramente para o tejadilho onde se escondeu entre os cabazes com os farnéis e garrafões de vinho, tapando-se com a lona e protegendo-se com a rede.

Passadas duas ou três horas de viagem deu-lhe vontade de urinar e não esteve com meias medidas, mesmo com os solavancos do autocarro, tratou de aliviar-se. Foi então que um dos passageiros, olhando pela janela,  reparou no líquido que escorria do tejadilho e logo se apressou a chamar a atenção do condutor, para que este parasse a viatura porque um dos garrafões de vinho branco estaria a entornar.

Lá foram todos numa correria lá acima, preocupados com o vinho e descobriram que afinal era o “Kali”. Recolheram-no, acabando o bom homem por fazer o resto da viagem sentado no interior do autocarro.

Provavelmente a imagem que mais marcou os setubalenses foi aquela, lamentavelmente promovida sobre a égide da autarquia, ocorrida no decurso do carnaval de Setúbal, em 1968, quando desfilou encerrado numa jaula e com uma gaiola com patos em cima da mesma, para alarve diversão de uma multidão que gritava: “Kali! Olha os patos da Mariana” ao que este irritado e impotente insultava e praguejava.

O povo respondia com “trapada” e atiçava-o ainda mais imitando o grasnar dos patos que outros tinham roubado e comido: “quá…quá…quá”.

Rui Canas Gaspar
2015-julho-21

www.troineiro.blogspot.com

Sem comentários:

Enviar um comentário