Adeus Setúbal
Com ele tenho convivido ao longo das dezenas
de anos, iniciando-se a nossa íntima relação logo após ter sido dado à luz no
distante fiord de Kiel, na Alemanha.
Já
em pleno inverno, encetei a viagem de uma semana pelo Oceano Atlântico, nem
sempre calmo, diga-se de passagem, navegando desde o local do meu nascimento
até Portugal. Por aqui tendo ficado e trabalhado arduamente, ou não fosse eu um
forte barco construído com chapas recicladas de carros de combate utilizados na
Primeira Grande Guerra.
Tive
a grata missão de transportar as mais diversas pessoas: umas de origem humilde,
outras figuras importantes, de uma para a outra margem do Rio Tejo,
orgulhando-me de ser o barco que mais gente passei de uma para a outra banda.
Todos
gostavam de mim e eu próprio também tinha muito orgulho na minha pessoa, não
por ser narcisista, mas porque quando jovem, era de facto bonito, o mais rápido
no Tejo, muito asseado, o único que aqui usava motor diesel. Ninguém, em todo o mundo, tinha hélices como as minhas,
fabricadas em aço inoxidável, um material ainda pouco conhecido naquela época.
Trabalhei
duramente durante muitos anos no transporte de pessoas entre o Barreiro e
Lisboa até que pouco depois da revolução de 25 de abril de 1974 prescindiram
dos meus serviços, dizendo que eu estava velho demais, imaginem!...
Encostaram-me
a um velho cais e para ali estive triste e abandonado e quase condenado à morte
não fora um setubalense que me viu e me salvou e me trouxe para o belo rio azul
naquele ano de 1990.
Depois
de recuperado por aqui andei com os meus amigos golfinhos, de vez em quando ia
até ao Tejo fazer uns serviços, mas regressava sempre às águas azuis do nosso
Sado.
Certo
dia, em 2017, um alfacinha enamorou-se de mim e comprou-me, levando-me de volta ao Tejo
onde agora ao som do fado transporto turistas e visitantes da bela capital
portuguesa, embora reconheça que estas águas nada tem a ver com aquelas outras
que me acolheram ao longo de cerca de um quarto de século.
A
vida tem destas coisas e sabe-se lá quantos mais anos ainda andarei por cá e o
que será que a vida me reserva.
Resta-me
despedir-me dos meus bons amigos, sobretudo daqueles que gostavam tanto de mim
que me alcunharam do “Cisne branco do Sado” e que carinhosamente usaram os meus
serviços onde juntos desfrutamos do nosso belo rio azul.
Rui
Canas Gaspar
2017-junho-18
Sem comentários:
Enviar um comentário