E tudo por causa de umas
botas cardadas…
A
escola para ele só começava da parte da tarde e, o Francisco com os seus 8 ou 9
aninhos, mal saiu de casa, localizada no andar de cima do pequeno prédio onde segundo
a tradição teria nascido a famosa cantora Luísa Todi, viu um rapaz com uma bola,
daquelas feitas com uma meia cheia de trapos.
Correu
para ele tirou-lhe a bola e logo ali no largo fronteiro à casa e onde
funcionava a “Escola da Coelha”, junto à Rua da Brasileira, no Bairro de
Troino, conjuntamente com mais uns quantos rapazes da sua idade se iniciou uma
partida do desporto-rei.
Um
deles, calçando as suas novas botas, cardadas, para a sola durar mais tempo, ao
dar o primeiro pontapé na bola, escorregou na calçada, caiu e começou a sangrar
da cabeça.
Ao
verem o sangue a jorrar, logo os rapazes correram com o acidentado para o
Hospital da Misericórdia, que funcionava anexo ao Convento de Jesus, ali bem
perto.
Entretanto,
a hora da escola chegou e os rapazes lá foram muito caladinhos para lá. A
professora Coelha, que não tinha fama de ser muito meiga, ao ver o moço de
cabeça ligada tratou logo de saber como aquilo tinha acontecido e, sem perder
muito tempo, tratou de aplicar o respetivo corretivo.
Três
reguadas, bem aplicadas na palma da mão a cada jogador e meia dúzia para o
Francisco que era o “dono” da bola. Seguidamente foram todos mandados para casa,
para levarem segunda doze das respetivas mães.
A
mãe do Francisco, quando chegou a casa após um dia de trabalho árduo na fábrica
de conservas, ao inteirar-se do que se passou, provavelmente não gostou do
castigo aplicado ao rapaz, ou talvez não estivesse na disposição de pagar à
professora Coelha para o rapaz não ter aulas, imediatamente tratou de tirá-lo
da escola.
Durante
dois anos o pequeno Francisco deambulou pela Praia do Seixal, onde
posteriormente se viria construir a doca dos pescadores e ali ia conseguindo
arranjar uns peixes para levar para casa e desta forma ajudar na economia
doméstica.
Quando
o rapaz atingiu os 11 anos conseguiu um lugar num dos barcos setubalenses e
tornar-se-ia pescador.
A
exemplo da esmagadora maioria dos homens do mar daquele tempo, ele não tinha
sequer completado a terceira classe, ou seja, pouco ou nada sabia ler e
escrever.
E
foi necessário chegar ao início dos anos 70, com quase meio século de vida,
para decidir ir para a escola, na Casa dos Pescadores, onde tirou a 4ª classe e
logo de seguida a carta de arrais da pesca costeira, a necessária autorização
para desempenhar uma atividade para a qual estava mais que apto.
Foi
um esforço tremendo! Depois de vir cansado do mar, muitas vezes sem dormir, lá
ele ia para a escola e com tal afinco que nos deixava boquiabertos.
Bem poderia
ter sido mais fácil, não fossem aquelas botas cardadas…
O
Francisco quando fez os 22 anos casou-se com uma prendada jovem nascida também
no Bairro de Troino. Desse casamento nasceram dois rapazes, que já lhe deram
descendência.
Hoje,
perto de completar 90 anos, e depois de sofrer um acidente ocasionado pelo mau
estado do piso perto da sua residência, encontra-se a recuperar a mobilidade.
A
sua cabeça está em plena forma e continua a contar-me as mais bonitas histórias
de vida que vou escrevendo e partilhando com os meus conterrâneos.
E
é para este que foi um profissional competente, um marido exemplar e um pai
modelo, bem como para todos os outros com ou sem estas características, quer
ainda se encontrem entre nós ou que já tenham partido, que desejo um ótimo DIA
DO PAI.
Rui Canas Gaspar
2015-março-18
www.troineiro.blogspot.com
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